Pode parecer incomum que eu dedique um texto ao tema proposto, uma vez que não sou advogado, americano nem tenho filhos. Entretanto, e para minha grande surpresa, uma boa quantidade de tráfego chega ao blog através de ferramentas de busca procurando por termos relativos a este notório caso (por causa do texto sobre o livro Freakonomics, que você pode ler clicando aqui). Parte disso, creio eu, deve-se ao fato de que há pouca informação em português sobre o caso. E como eu acredito que devo tentar preencher as necessidades dos meus poucos leitores, resolvi escrever uma abordagem simples e direta sobre o assunto.
Antes de mais nada, vale mencionar que nos EUA é comum fazer referência a decisões judiciais utilizando os nomes que representavam cada lado do processo. Roe v. Wade, portanto, foi um processo que opôs, inicialmente, as pessoas de Jane Roe e Henry Wade. Jane Roe era, na verdade, o pseudônimo de Norma Leah McCorvey, nascida em 22 de setembro de 1947, na cidade de Simmesport, no estado da Louisiana. A história dela envolve situações que não são estranhas à nossa realidade brasileira: pais divorciados, mãe alcoólatra e violenta, abandono da escola, um casamento que não deu certo, a primeira gravidez aos 17 anos, a segunda no ano seguinte. A primeira filha de Norma passou à guarda da avó, que distanciou-se da filha ao saber que ela era homossexual. A segunda filha foi entregue para adoção. O que torna a realidade de Jane Roe diferente da realidade enfrentada por nós, brasileiros, manifestou-se quando, aos 21 anos, ela engravidou pela terceira vez. Desta vez, ela preferiu não ter a criança, e foi aconselhada por amigos a dizer que havia sido estuprada – caso no qual a lei do Texas permitia o aborto. Como não havia provas do estupro, ela não recebeu permissão para abortar. Ela então procurou uma clínica clandestina, mas essa havia sido fechada pela polícia. Nesse ponto, ela fez o que os cidadãos americanos fazem quando acham que estão sendo tratados erroneamente: foi à Justiça.
Ela foi representada pelas advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington, e o réu no caso era o estado do Texas, que foi representado por Henry Wade, o district attorney (promotor público de maior autoridade em um distrito) do condado de Dallas. Durante o processo, o suposto estupro de Norma não foi mencionado – ela admitiu posteriormente ter mentido. A corte deu ganho de causa a Norma, garantindo o direito dela de optar pelo aborto. O caso foi levado então à Suprema Corte, órgão máximo da justiça dos Estados Unidos. Robert C. Flowers substitui Henry Wade, enquanto Sarah Weddington continuou a representar Norma. Dois renomados juristas estadunidenses, William Rehnquist e Lewis F. Powell, fizeram parte do grupo que julgou o mérito da ação. Em 22 de janeiro de 1972, a Suprema Corte decidiu, por 7 votos a 2, que a decisão prévia deveria se manter, ou seja, garantiram a vitória de Jane Roe.
Essa é uma das decisões judiciais mais importantes e talvez a mais famosa da História, pois suas consequências não foram apenas legais, e sim sociais. O impacto da legalização do aborto foi tão intenso que até hoje, várias década depois, o tema ainda causa polêmica, discussões acaloradas, mobiliza grupos e ONGs e, eventualmente descamba até para a violência. Um resultado perceptível da decisão foi o aparecimento dos grupos pro-life (a favor da vida) e pro-choice (a favor da escolha). Há clinicas destinadas ao aborto nos EUA, e há grupos de pessoas que montam guarda em frente às mesmas tentando desestimular as mulheres que pensam em recorrer a elas. No já citado livro Freakonomics, Stephen Levitt levantou polêmica ao associar a diminuição na criminalidade nos EUA a partir de meados da década de 1990 à legalização do aborto. De acordo com os dados que fundamentam a conclusão de Levitt, o fato de que muitas crianças que nasceriam em lares pobres e sem condições diminuiu o contingente de pessoas com maior propensão ao crime. Um dos argumentos que suportam essa conclusão é que a criminalidade começou a decrescer por último nos estados que mais demoraram a respeitar a decisão Roe v. Wade. Também é comum deparar-se com referências ao caso em exemplares da cultura pop americana. Os fãs das séries da franquia Law and Order, por exemplo, certamente já ouviram falar do assunto.
Há algumas curiosidades relacionadas ao caso. Uma delas é que, como se pode imaginar, a decisão judicial não veio a tempo. Quando venceu definitivamente a disputa, Norma já havia tido a terceira filha. Ela foi entregue à adoção, assim como a segunda havia sido. Outra curiosidade é que, em 1994, ela converteu-se ao catolicismo apostólico romano – a religião predominante nos EUA é o protestantismo. Ela logo passou a externar remorso por seu papel na legalização do aborto e a participar de grupos pró-vida.
Não é minha intenção manifestar apoio a nenhum dos dois lados da questão. Confesso que, por mais que já tenha ouvido argumentos contrários, não consigo encontrar uma resposta que seja realmente satisfatória para esse dilema. O ideal, é claro, seria que só engravidassem os casais que desejam e têm condições de ter filhos. Enquanto uma realidade como essa não chega, ficamos entre duas opções ruins. De uma forma ou de outra, espero ter ajudado quem procura informação em português sobre o assunto.
A maioria dos fatos relatados aqui foram tirados da Wikipedia e do livro Freakonomics. As opiniões, obviamente, são minhas. Há dois livros escritos pela própria Norma, intitulados I am Roe (de 1994) e Won by Love (de 1998). Há também um filme feito para TV chamado Roe X Wade, estrelado por Holly Hunter e lançado em 1989.