O leitor que já conferiu a sessão “O Autor” aqui do blog sabe que fiz mestrado na cidade de São Carlos/SP. Morei lá de entre março de 2004 e maio de 2006; voltei algumas vezes depois disso. Nesse tempo, desenvolvi uma boa relação com a cidade: me diverti muito por lá, conheci gente diferente, de várias partes do Brasil; fui a vários bons shows no SESC; assisti a filmes clássicos, muitas vezes difíceis de encontrar, em sessões no CDCC da USP e no Cine UFSCar; e, é claro, frequentei muitas festas. São Carlos abriga duas grandes Universidades, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), além de algumas faculdades particulares. É por isso que nunca deixa de haver eventos e opções voltados ao público jovem, tanto em temática quanto em custo. Tudo isso faz parte de uma etapa crucial do desenvolvimento pessoal e intelectual, e contribuiu muito para o meu amadurecimento. Não tenho dúvidas de que foi a época em que mais me diverti; mas foi também aquela em que mais cresci como pessoa. Não se passa um dia sem que as coisas que aprendi enquanto estava lá não façam diferença na minha vida.
Pôster oficial da edição 2011 da Taça Universitária de São Carlos
Muitas das festas de São Carlos são eventos anuais bastante esperados, como o Baile do Bixo, o Baile do Trocado e a Meta-a-Morfose. Mas nenhum acontecimento é tão esperado quanto a Taça Universitária de São Carlos, a TUSCA. USP, UFSCar e mais duas Universidades convidadas enfrentam-se em competições esportivas variadas. Os jogos contam com torcidas muito bem organizadas, com direito a bateria, canções e gritos de guerra diversos e muita provocação contra os adversários. Ao final, a instituição de ensino com maior pontuação é declarada a grande vencedora. Mas o ápice do evento acontece na abertura, uma festa chamada de Corso. Trata-se de um cortejo que, tradicionalmente partia do campus da USP e dirigia-se ao da UFSCar. Em 2004, meu primeiro ano na cidade, esse foi o trajeto. No ano seguinte, a UFSCar vetou o uso de seu campus, e a festa foi dirigida a uma danceteria da região. Essa pequena “implicância” da instituição federal talvez fosse apenas o prenúncio do que viria a acontecer. No ano passado, um dos participantes da festa, altamente alcoolizado, caiu em um dos vários córregos que cortam o município e morreu. Houve uma discussão sobre o significado do Corso, se sua ocorrência trazia mais benefícios ou prejuízos para a cidade, e se o comportamento dos universitários participantes era condizente com a beneficiada elite de que fazem parte, com acesso a ensino superior de alta qualidade.
Torcida da USP durante jogo da TUSCA 2009
Se o trajeto do Corso já não era o mesmo, o falecimento do estudante no ano anterior mudou de vez a cara do evento. Ao invés de ocorrer na região universitária da cidade, a abertura da TUSCA foi transferida para a região sul do município, mais plana e em percurso que não cruza nenhum córrego. O evento esportivo prossegue até o domingo à noite, mas já conseguiu firmar-se como trágico. Na noite de quinta-feira, durante o cortejo do Corso, um estudante aparentemente envolveu-se em briga e, depois de empurrado, caiu e foi atropelado por um caminhão de bebidas que acompanhava a festa. Dois anos, dois Corsos, dois mortos. Mas infelizmente os acontecimentos trágicos não pararam por aí: na manhã de hoje, um universitário foi preso após atropelar e matar uma senhora que havia saído para comprar pão. O motorista estava bêbado e saia de uma festa ligada à TUSCA. De acordo com matéria publicada na página da Folha.com, essas foram apenas as mais notáveis dentre várias ocorrências negativas, incluindo roubos, furtos, acidentes de trânsito e tráfico de drogas. Um dos trechos da reportagem diz o seguinte:
‘Tráfico e posse de drogas, roubos, furtos e acidentes de trânsito aumentam em até 50% os registros de ocorrências policiais durante a Tusca, que começou na última quinta (15) e segue até domingo (18) em São Carlos.
A estimativa é do delegado Caio Gobato, que esteve de plantão na Polícia Civil na noite de quinta, quando morreu o jovem atropelado no Corso.
“Sempre [que tem Tusca] o plantão é pesado”, disse. “Em uma estimativa baixa, os casos aumentam pelo menos 50%”, afirmou.‘
A Folha cita ainda o caso de um estudante da Unicamp esfaqueado defendendo-se de um assalto.
Frente a isso, não há dúvidas de que a discussão do ano passado voltará, e mais intensa. Se, com medidas de segurança, as mortes aumentaram, será possível controlar o evento? Ou seriam essas ocorrências meras fatalidades, como foram descritas por alguns, de políticos da cidade a frequentadores de redes sociais? Extinguir a festa seria a solução?
Em primeiro lugar, não considero apropriado tratar todos esses acontecimentos como meras fatalidades. Isso não quer dizer que se deve culpar os organizadores por tudo o que acontece de errado, mas sim reconhecer que os eventos e a própria atmosfera que cerca a TUSCA criam ou potencializam situações de risco. Proibir, então? De forma alguma. Em primeiro lugar, por uma questão de princípios; proibir é a alternativa covarde e simplista de quem não quer buscar uma solução que realmente trate o assunto profundamente. Em segundo lugar, eventos como a TUSCA trazem uma série de benefícios, tanto para os organizadores quanto para os alunos e também para a cidade. A questão é, portanto, o que fazer para que os fatores positivos continuem valendo, sem o ônus de aumento de criminalidade, acidentes, vandalismo, dentre outros. Impossível, não é. E trago como exemplo uma lembrança que aliás data de 2004, quando morava em São Carlos. Fui com alguns colegas de mestrado para a oktoberfest de Blumenau/SC. A oktoberfest da cidade catarinense é considerada a maior festa de tradição germânica das Américas. E um dos pontos centrais é o consumo de bebidas alcoólicas. Em um dos dias em que frequentamos a festa, uma briga começou bem próximo de onde estávamos. Antes mesmo que percebêssemos exatamente o que se passava, seguranças já haviam aparecido e estavam encaminhando os brigões para fora. Até onde eu me lembro, foi o maior exemplo de segurança eficiente que presenciei com meus próprios olhos. E foi no Brasil, não em algum país ultra-desenvolvido da Europa.
Trio elétrico seguido por multidão ao longo de córrego durante o Corso 2010
Vale ressaltar que temos duas grandes Universidades e mais a prefeitura de São Carlos envolvidos; com uma organização que favoreça a busca conjunta de alternativas, a troca eficiente de informações e a resposta rápida a imprevistos, me custa crer que não seja possível desenvolver o evento de forma que seja divertido mas também seguro. Isso sem contar que também é do interesse de setores da economia municipal que o evento continue, e torne-se até maior. Tem que haver vontade, antes de mais nada: vontade de ir além da diversão irrefreada, vontade política, vontade de participar de uma evolução natural do processo. Da parte das Universidades, e das instituições dentro das Universidades que organizam o evento, o primeiro passo é criar um sistema de divulgação e propaganda da TUSCA que enfoque com clareza a questão da segurança, lembrando aos alunos para que repassem informações relevantes também aos visitantes com quem tiverem contato. Além disso, como organizadores, devem arcar com a responsabilidade de garantir a segurança nas atividades que compõe oficialmente o evento. A prefeitura, por outro lado, tem entre suas responsabilidades: manter a sinalização urbana em bom estado, visível e clara; manter as calçadas em condições que permitam seu uso pelos pedestres com segurança; fiscalizar os abusos no uso de vias públicas, proteger o patrimônio público e privado da ação de vândalos e garantir a aplicação da lei; instalar proteção e sinalização em pontos de risco, como a beira de córregos. Em alguns países da Europa, quem é preso causando tumulto em grandes eventos passa a ter a obrigação de apresentar-se à polícia algumas horas antes de qualquer edição futura do evento, permanecendo na delegacia até após o término das atividades. É uma solução que poderia ser adotada para controlar frequentadores muito “animados”. Nos casos em que ocorrem crimes, é claro, estes devem ser punidos conforme a lei.
O maior apelo, entretanto, vai para os universitários frequentadores do evento. A diversão e a interação constituem-se de parte essencial da experiência que é a vida acadêmica. Amizades são feitas nesse período que continuarão para o resto da vida; amores nascem, alguns tornam-se felizes estórias, outros tristes lições; acima de tudo, boas memórias são construídas. Alguns dizem que a função do aluno é estudar, mas apenas os livros e as provas não preparam para o pleno exercício da vida privada ou do papel de cidadão. É importante divertir-se, é importante ter vida social. Mas é justo esperar de quem ocupa um posto tão diferenciado como o de estudar na USP ou na UFSCar que tenha consciência de seu papel de membro de uma elite. Uma elite que, diferentemente de tantos brasileiros que não vão receber ensino superior (ou em alguns casos nem mesmo médio ou fundamental), pode estudar em Universidades de qualidade reconhecida. Por mais méritos que esses estudantes tenham em conquistar o direito de ingressar nessas instituições, devem reconhecer que há uma sociedade que os mantém lá, desde os pais que os incentivaram e bancaram os estudos, até o cidadão comum, pagador de impostos. O Brasil precisa de bons profissionais. O Brasil precisa de boas pessoas. O Brasil não precisa de jovens mortos ou presos por uma noite de diversão inconsequente.
Observação: imagens selecionadas através do Google Images. Havendo restrição quanto ao uso, favor me contatar.