Nota: este texto deveria ter sido publicado ainda no início de setembro, mas por descuido meu ficou salvo como rascunho, ao invés. Com algum atraso, aqui vai.
Texto de autoria de Amílcar Figueiredo.
Este texto faz parte do Festival CeC de Cinema Francês. Para saber mais, clique aqui.
Agressividade intelectual
A diretora francesa Catherine Breillat concebeu e executou Fat Girl (À ma soeur!, 2001) com a agudeza de uma navalha. Cada frame, cada diálogo presente no filme tem o propósito de provocar, instigar, questionar e, em último grau, expor idiossincrasias da sociedade ocidental contemporânea acerca de temas como amor, sexualidade, gênero e morte. O pano de fundo é o relacionamento entre três jovens durante as férias de verão no sul da França: a bela adolescente Elena, de 15 anos (a deslumbrante Roxane Mesquida), o estudante italiano Fernando, que a seduz (Libero de Rienzo), e a testemunha ocular de todo o processo, a irmã mais jovem de Elena, Anaïs, de apenas 13 anos (Anaïs Reboux).
Anaïs é a garota gorda do título em inglês, que recebe de seus pais uma incumbência para lá de ingrata: estar sempre com a sua irmã, não importa o que aconteça, estejam onde estiverem. A tarefa é ainda mais inglória se levado em consideração o fato de que Elena é uma verdadeira bitch em processo de formação: fútil, inconsequente e gratuitamente cruel com sua irmã menor. Enquanto Elena jacta-se de sua beleza, de como os homens a desejam e de como ela não terá dificuldades para encontrar um que queira desvirginá-la por amor – de onde vem o interesse paterno em transformar a irmã menor numa espécie de guarda-costas -, Anaïs é bem mais pragmática: seu desejo é de que sua primeira vez seja com um homem sem qualquer vínculo emocional com ela, assim não há risco de corações serem partidos quando ele se for.
Em Fat Girl, cuja estrutura repousa, primordialmente, no processo de sedução de Elena por Fernando, nada é o que parece. Nós, espectadores, somos inicialmente convidados a encaixar os personagens principais em seus arquétipos tradicionais (a mocinha inocente e iludida, o garanhão conquistador que não vale nada, a gorducha problemática e rancorosa), para sermos surpreendidos por inversões de papéis logo em seguida. A diretora trabalha com sucessivos choques estéticos e psicológicos (nudez frontal, violência verbal e física, abandono emocional sucedido por demonstrações de afeto) para nos dizer que é a mera reprodução de valores e constructos puramente sociais (no caso, a virgindade, um conceito destituído de valor biológico) que, em última análise, nos leva ao insucesso e à infelicidade.
Quando Elena, logo após o segundo encontro com Fernando, o convida para o seu quarto – com Anaïs na cama ao lado – mas desiste de perder a virgindade com ele, afirmando que tem que haver amor nesse momento, Fernando responde dizendo que as garotas, em regra, consentem em fazer sexo anal como uma “prova de amor”. Embora o amor seja o cerne da conversa e, supostamente, o objetivo maior dos dois, o que menos se vê ao longo dos pouco mais de oitenta minutos do filme é amor. Fernando não ama Elena, e esta não o ama em resposta, tampouco ama Anaïs ou seus pais. Não há amor, nunca houve. Há apenas desejo, o desejo sexual de dois jovens, mas a incapacidade de eles lidarem com a situação – o surgimento da atração física pura e simples -, pelo fato de estarem reproduzindo valores sociais que não são os deles, os leva à construção de um teatro, uma mentira que, no fundo, é conhecida por todos os envolvidos e que os levará à desgraça.
A sugestão maior de Breillat é de que é a forma como a sociedade interpreta e, em última análise, reprime o desejo sexual – da mulher, principalmente – é que resulta em insatisfação e fracasso. O insucesso é de variadas ordens: emocional, familiar e mesmo estatal – algo revelado no absurdo rompante de violência do polêmico final, quando vários desejos travestidos de profecias, verbalizados ao longo do filme, serão concretizados. Serão de Anaïs, a única personagem lúcida de Fat Girl, as palavras mais impactantes, o extravazamento de que, afinal de contas, é o que se passa dentro dela, independentemente de convenções sociais, que realmente importa.