Nos dias recentes, muito se falou sobre o tal livro que “ensina a falar errado”. Trata-se da obra Por Uma Vida Melhor, de autoria de Heloísa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Cleto. Ele é editado pela ONG Ação Educativa e foi comprado em vasta quantidade – meio milhão de unidades, de acordo com o que eu li – pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e distribuído para 4.236 escolas. Mas qual é, verdadeiramente, a polêmica nesta questão? O livro ensina mesmo a falar errado? As discussões trilharam caminhos tão variados que talvez muito do foco tenha se perdido, então vamos por partes.
O que foi falado sobre o livro restringiu-se ao primeiro capítulo do mesmo, e eu tive a oportunidade de ler o tal capítulo. Quando tratam das concordâncias verbais e nominais, os autores afirmam que é aceitável dizer uma frase como “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” – com ênfase em ‘dizer’, pois nesse ponto o livro está se referindo à linguagem falada, e não à escrita. Pega fora de contexto, essa passagem pode suscitar dúvidas; quando se lê o capítulo como um todo, percebe-se que existe clareza no sentido de separar o que é informal – para ser usado em situações de tal natureza – do que é formal. Na introdução mesmo pode-se ler:
“Neste capítulo, vamos exercitar algumas características da linguagem escrita. Além disso, vamos estudar uma variedade da língua portuguesa: a norma culta. Para entender o que ela é e a sua importância, é preciso antes conhecer alguns conceitos.”
Assim sendo, as observações sobre as diferenças entre as formas pelas quais as pessoas se expressam têm o intuito de situar o aluno. Ora, a educação deveria ser feita por meio de contextualização (e como seriam melhores certas aulas se não fossem apenas um exercício de decorar informações, não é?), e é saudável que o aluno compreenda qual é o lugar daquilo que está sendo ensinado, e porque é importante aprender. Isso não significa que a escola deva ensinar a “falar errado”, o foco deve ser sempre na estrutura formal, gramatical da língua, pois é ela que o aluno dificilmente aprenderá por si só. A comparação com a expressão coloquial, entretanto, pode ajudar nisso e não deveria ser descartada. Alguns mais exaltados disseram que nem mesmo as regras gramaticais deveriam importar, uma vez que a língua é viva. Neste ponto eu passo a discordar. Virtualmente todos os ramos do conhecimento humano são mutantes, mas nem por isso alguém seria suficientemente tolo a ponto de sugerir que ignorássemos as leis de Newton e passássemos diretamente para o estudo da física quântica. Quando as pessoas não aprendem os fundamentos, no caso do português o próprio “molde” da língua, passam à condição de reféns, que perceberão intuitivamente mudanças na comunicação, mas sem terem o ferramental necessário para compreender de onde e para onde o idioma se movimenta.
Aliás, cabe aqui um parêntese: alguns educadores reagiram de forma bastante agressiva, quase beligerante, às críticas feitas ao livro. É uma pena, pois espera-se, daqueles cuja missão é guiar os alunos, que tenham suficiente tolerância e autocontrole para lidar com contrariedades e temas polêmicos. A meu ver, um professor que aborda uma questão controversa oferecendo aos alunos as próprias respostas dele, professor, é um profissional que deveria ser excluído do sistema educacional, pois não se presta a sua função: garantir que o aluno atinja o ponto de raciocinar por si mesmo e chegar às conclusões que melhor representem a sua própria identidade.
Voltando ao livro, quer dizer, então, que não há nada de errado e as críticas são todas infundadas? Infelizmente, não – e digo infelizmente porque é claro que quem pagou por esse papel todo fomos nós, pagadores de impostos. Logo na sequência do trecho que foi citado anteriormente, o livro avisa ao aluno que deve ter cuidado quando usa linguagem informal, pois pode ser vítima de “preconceito linguístico”, e prossegue em uma digressão sobre as “camadas dominantes”. E aqui, sim, a publicação mostra-se problemática. Usar a linguagem para instigar luta de classes é, por si só, um desserviço ao ensino. E, pior, o livro nem sequer explica o que seria preconceito linguístico ou quem constituiria as classes dominantes, tornando-se a própria obra um veículo de preconceito. Talvez os autores tenham feito isso para agradar a seu “cliente”, sabendo que o partido que está no governo tem prazer em dividir a sociedade em castas, ou talvez o trecho seja realmente reflexo da crença de seus escritores. Qualquer que seja o motivo, é totalmente despropositado que haja esse conteúdo, por dois motivos: por não trazer benefício ao que o livro deveria ensinar, uma vez que, ao tratar a língua formal como “língua dos opressores” o livro pode criar resistência do aluno ao tema; e por buscar executar doutrinação em um ambiente que deveria primar pela liberdade de ideias e pela expansão dos horizontes.
Resumindo: o problema não está em usar e justificar a linguagem informal – desde que não se perca de vista que o objetivo deve ser ensinar a linguagem formal – mas sim em promover discurso político-partidário pago pelo bolso do cidadão brasileiro. Pessoas realmente preocupadas com o futuro do aluno – e do país – devem acima de tudo defender a liberdade e a autonomia.
Para que o caro leitor não fique apenas com a minha palavra, compilei uma pequena lista de referências para aprofundar-se na questão:
Livro “Por Uma Vida Melhor“, primeiro capítulo.
Programa “Entre Aspas“, da GloboNews, com os convidados Cristóvão Tezza e Marcelino Freire debatendo o assunto.
O amigo Valdeci, em seu blog Mais de 140 Caracteres, também tratou do assunto.
As partes
“E, pior, o livro nem sequer explica o que seria preconceito linguístico ou quem constituiria as classes dominantes, tornando-se a própria obra um veículo de preconceito.”
e “[…] ao tratar a língua formal como “língua dos opressores” o livro pode criar resistência do aluno ao tema […]”
são fantásticas! além da polêmica gramatical exaltada, nesses fragmentos a questão política ficou evidente. Forte a coisa.. se elas tiveram a intenção de separar isso seria bacana de ser revisto também.
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Outra perspectiva interessante sobre esta polêmica toda. Realmente esta ideia de querer incutir no aluno um pensamento de “esquerda” não é bem o papel da escola. Fazer o aluno pensar é salutar, mas pensar de forma ampla e não apenas para um lado.
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“garantir que o aluno atinja o ponto de raciocinar por si mesmo e chegar às conclusões que melhor representem a sua própria identidade”. Sim, Marcelo, esse é o caminho ideal. Lamentavelmente, não é o que os capangas do CPERS querem, pois usam a falsa “luta do professor” (ilegítima para o objetivo em que a empregam), para fazer doutrinação ideológica de esquerda nas escolas e universidades. Não só nas públicas, frise-se. Estudei em escolas privadas e era comum presenciar esses discursos de segmentação de classe, a fim de provocar o ódio entre diferentes. Excelente análise a sua.
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É difícil um post de teor mais sério receber comentários. Fico muito feliz e agradeço aos amigos por terem deixado suas impressões aqui.
Lola, também tenho um desgosto muito grande pelo CPERS. O Alexandre (lembra dele, do show do Oasis?) e eu costumávamos falar disso. Tenho tias ex-professoras, além de ter eu mesmo dado aulas, então respeito muito a luta dos educadores por mais respeito, tanto do ponto de vista comportamental quanto financeiro. Professores deveriam estar entre os profissionais mais valorizados. Mas o CPERS tornou-se um apêndice partidário e ideológico, interessado em criar desordem e não em fomentar o debate de como melhorar a educação. É lamentável. Os professores gaúchos precisam – e merecem, aliás muito – uma representação mais adequada.
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